O ambiente virtual vicia mais que cocaína
A afirmação contida no título deste artigo é do médico-cirurgião francês Laurent
Alexandre em seu livro mais recente A guerra das inteligências na era do chatgpt,
lançado em 2024. Para ele, “amanhã, a realidade virtual nos enfeitiçará, pois a IA saberá
exatamente como fascinar nosso cérebro e mantê-lo sob seu domínio”. Esse feitiço será
possível porque a inteligência artificial será capaz de fornecer a cada pessoa na tela do
seu smartphone ou do computador o conteúdo na medida exata do seu gosto. Essa
entrega de conteúdo personalizado se baseia nas informações genéticas, cognitivas e
subjetivas, que possibilitam a IA fazer uma leitura mais profunda e acertada a respeito
da pessoa que ela própria.
É verdade que esse tipo de personalização talvez ainda não seja totalmente possível,
mas é inegável que vestígios de sua existência já podem ser comprovados por cada um
de nós que faz uso, por exemplo, de uma rede social como Instagram ou Facebook.
Nesse sentido, Yuval Harari, em seu livro recente Nexus: uma breve história das redes
de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial, de 2024, argumenta que os
computadores, por meio da inteligência artificial, embora não sintam dor, amor ou
medo, são capazes de tomar decisões que maximizam o envolvimento do usuário e
ainda podem afetar importantes acontecimentos históricos. Não é de estranhar, então,
que, com base em todas as nossas informações disponíveis na internet e na internet das
coisas, o mundo virtual possa se tornar um vício, alimentando-nos dia e noite
exatamente do que mais gostamos. O que pode ser mais viciante? As redes sociais, com
o recurso da tela infinita, podem ser um bom exemplo de que este futuro, na verdade, já
chegou.
Primeiro passo: aceite que a inteligência artificial já é uma realidade
Como cada um de nós pode se proteger desse vício e, também, ajudar as próximas
gerações a navegar nesse admirável novo mundo com mais segurança? Acredito que o
primeiro passo é reconhecer que a revolução tecnológica, que inclui os avanços da
inteligência artificial, é um fato, e que não há retorno. O melhor que podemos fazer é
evitar o fascínio e a ignorância. Nenhum dos dois extremos é saudável. Como
argumentam Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar, em seu livro A próxima onda:
inteligência artificial, poder e o maior dilema do século XXI, a inteligência artificial já
chegou e se configura como uma onda a qual não se pode conter, trazendo benefícios e
perigos potenciais a toda humanidade. O melhor que podemos fazer é ser lúcidos e
adotar um posicionamento crítico diante dessa realidade que já faz parte da nossa
paisagem diária.
Segundo passo: o exercício do limite e da responsabilidade
O segundo ponto se relaciona a limites. Gosto muito da metáfora do psicanalista
brasileiro Jorge Forbes sobre o restaurante. Não é porque há de tudo no restaurante que
você precisa, necessariamente, colocar de tudo no seu prato. Não é porque há seus
pratos preferidos que você deve se empanturrar. Um limite, é claro, precisa ser
imposto: no caso do adulto, por ele mesmo, e no caso de menores, pelos seus
cuidadores. O mesmo se aplica a todos os demais campos da vida, em particular ao que
pode ser ofertado no mundo digital por meio da IA. À medida que a estrutura social
oferece uma liberdade que parece infinita, cabe a cada um aprender a exercitar seus
próprios limites. No caso dos cuidadores e educadores, o princípio responsabilidade
deve convocar a cada um a exercitar esse ato de amor, que é ensinar as novas gerações a
fazer escolhas lúcidas e responsáveis, o que exige, certamente, sabedoria e coragem.
Não resta a menor dúvida que com o avanço da inteligência artificial, saber fazer
escolhas e se impor limites serão cada vez mais habilidades essenciais. Talvez, hoje
mais do nunca, vale a máxima de Jorge Forbes: primeiro se é responsável, depois é que
vem a liberdade. Se não tivermos cuidado, a imensa liberdade de consumir o que há de
mais gostoso, porque personalizado, no ambiente digital, será uma prisão nossa do dia a
dia, voluntária e sem grades. Com certeza não queremos isso, nem para nós, e nem para
nossos filhos.
Sobre o autor:
Francisco Neto Pereira Pinto é professor universitário, escritor e
psicanalista. Doutor em Ensino de Língua e Literatura. É autor de À beira do Araguaia.
Instagram: @francisconetopereirapinto
Acompanhe mais notícias como essa no PMW Notícias 💻📱